segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Enfermeiras de Sangue

Já anoitecera a algum tempo, no entanto, nos corredores frios do hospital a hora é sempre a mesma, indefinida como que honrando a continuidade eterna entre a vida e a morte. A mulher levava um embrulho branco nos braços, pela forma como o levava adivinhava-se uma criança de tenra idade, talvez um bebé, ela seguia, com alguma dificuldade, talvez devido ao peso, ou ao cansaço, mas tinha que acelerar o passo, não podia perder quem a guiava por um infindável labirinto de corredores brancos, largos e iluminados. Por fim, um elevador e, depois o serviço de pediatria. É fácil reconhecer o serviço de pediatria em qualquer hospital, há como que retoques de cor e formas que mesmo com boa vontade, nos parecem deslocadas e houve-se mais chorar do que gritar pois as crianças sabem que as suas dores são passageiras, mesmo que o não sejam. Acreditam em nós e pedem-nos ajuda, chorando. Raramente gritam ou se calam em desespero.
Naquele momento apenas se ouvia um choro longínquo e abafado, uma lamúria cadenciada de recém-nascido. Os outros dormiam nas suas caminhas brancas de grades protectoras.
A enfermaria dos mais pequeninos ficava logo no início do serviço, era uma sala enorme, em que se perfilavam em cada uma das paredes laterais, três caminhas de grades de cada lado, separadas por um cortinado contendo cada espaço individual, uma mesa com material de apoio médico do qual se destacava um aparelho para medir níveis de oxigénio e batimento cardíaco. Todas as crianças dormiam naquele momento, pela sala também se viam vultos de pessoas semi deitadas em cadeirões reclináveis, cadeiras e uma enorme mesa com uma televisão ultra moderna, no momento, desligada. Apenas o pip ocasional de uma das máquinas interrompia aquela paz. A mulher entrou e, a enfermeira, solícita e prestável, acomodou o menino na caminha central de lado esquerdo, que ainda estava vaga, indicou à mãe um dos cadeirões para descansar.
Esta depressa se apercebeu que aquela paz era apenas circunstancial e que, o choro de um, era acompanhado pelo coro de outros choros que se espalhavam pela sala até criar um som único e alucinante. Mas mais aflitivo do que os pedidos de socorro das crianças eram as máquinas que, combinadas com elas, reforçavam a urgência desse apoio disparando alarmes ensurdecedores e completamente inúteis, uma vez que todos estavam acordados e atentos prontos a prestar auxílio aos mais novinhos que sofriam quer os enfermeiros que, em bando branco, invadiam a sala, a qualquer hora, quer as pessoas, na sua maioria mulheres e mães que estavam vinte e quatro horas por dias e sessenta minutos por hora em atenção exclusiva ao seu bebé doente e por isso se encolhiam, como podiam em cadeiras para passar a noite. É claro que essas mulheres, enfermeiras de sangue, também precisavam de se alimentar, mas revezavam-se e nunca saiam todas. Para jantar iam em bando, como fazem os pinguins, mas aguardavam que chegassem os pais do trabalho e confiavam-lhes os seus amores, ficavam eles, em vez delas, por escassos minutos, uma vez que o tempo deveria ser apenas o necessário para se alimentarem e voltarem para velar junto da sua criança doente. Esse era o momento de encontro com aquele que estando ausente, nunca se ausentava. As palavras falavam de actos de rotina, de tratamentos e de vírus, os silêncios só falavam de amor. E quando partia, ficava no olhar da criança, no seu sorriso mudo e confiante. O dia era pastoso, branco, cheio de dúvidas e de receios. A noite um ensurdecedor grito de desesperos e de esperanças.

2 comentários:

  1. Quadro fabuloso de um mundo que muitos desconhecem,pela ausência de sentimentos, falta de tempo, eu dei como bem empregues os meus minutos. Beijinhos

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  2. Vim para te ler e gostei (como de costume) do que te li. Tive com a minha afilhada uma experiência deste tipo que "felizmentissimamente" terminou bem.

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