domingo, 28 de fevereiro de 2010

A Corrida

Saiu e fechou a porta. Desceu os degraus dois a dois, mas sem pressas, como se os seus passos fossem elásticos e os ténis pisassem apenas espuma. Chegou á rua num salto e iniciou uma corrida lenta e cadenciada, em passo largo e movimentos coordenados. Na manhã fria era apenas esta cadência que se ouvia, num eco profundo que devolvia apenas silêncio.
Corria como quem voa, planando sobre o chão, a sua mente estava longe e o corpo livre do seu controlo, fazia apenas os movimentos necessários, felinos e instintivos.
De momento nada levara a querer que estava perto de uma decisão, provavelmente nem ela própria saberia. Nos dias anteriores o seu pensamento andara emaranhado como um novelo, numa tempestade de sentimentos que a mantiveram prisioneira, quieta, calada, em repouso. Hoje, agora, o novelo desenredou-se e a consequência imediata fora o movimento.
O vento que lhe desembrulhava o cabelo era a metáfora da sede de alforria e de leme. Ela chegou ao primeiro cruzamento e escolheu sem abrandar o caminho da direita, mais antigo, menos transitado e que levava, depois da ponte, á passagem de nível. Á medida que o seu corpo aquecia, o seu passo aligeirava, mas sem perder nada da leveza inicial.
Passava pelas casas, pelas árvores habituais sem as ver, sem as olhar, já as teria visto vezes demais. Agora apenas se dedicava afincadamente a manter inconsciente o desejo que a movia, a mantê-lo longe de si, como se albergasse um pensamento que não era o seu. A decisão estava, no entanto, tomada, o caminho escolhido e a acção em movimento, mas o desfecho inevitável da mesma, mantinha-se furtivo no bater do coração, no peso do chão por debaixo dos pés, no vento que lhe gelava a face.
Ouviu, rompendo o silêncio, o longínquo apito do comboio rápido que atravessava o lugar, trespassando-o todas as manhãs. Estugou o passo, ia chegar a tempo. Atravessou a ponte como quem voa e no mesmo movimento saltou sobre a cancela fechada da passagem de nível sem guarda. O último som foi o do comboio, um apito estridente, agregado aos soluços da locomotiva que travou a fundo, arranhou os carris e parou, mas já tarde demais.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Quem são os marginais?

Eu sei que se que isto é um lugar comum e que muitas vezes as pessoas já se perguntaram a cerca disto: Em que local estamos a criar os nossos filhos? Que mundo é este? Em quem podem confiar as gerações mais novas, se aqueles que deviam ser o exemplo de lisura e de espírito comunitário são os primeiros a comprar e a vender “almas”. Como podemos nós educar os nossos filhos? E explicar-lhes como funcionam as instituições do nosso pais, se com a capa do direito prescrevem crimes, se os políticos eleitos por exercício democrático, cospem no espírito de cidadania e na confiança que o povo depositou neles.
Pessoalmente, já ultrapassei o sentimento de indignação, neste momento tenho medo, medo de não saber explicar aos meus filhos, com exemplos concretos, que a legalidade do direito é baseada na moral de um povo. Que o estado é uma pessoa de bem. Que aqueles que nos dirigem são os que se destacam pelo seu espírito de dedicação e de trabalho. Explicar-lhes que vale a pena ser justo, porque há sempre quem saiba o que é a justiça, que vale a pena não mentir, porque a verdade é um valor a enaltecer e não um erro pelo qual se paga bem caro. Explicar-lhes que a consciência não deve ser elástica, de modo a satisfazer os nossos desejos pessoais.
Mas para além do problema que tenho em me fazer ouvir, ainda terei outro problema se eles me ouvirem… O mais provável é estar a fazer deles uns inadaptados, porque não se servirão da primeira oportunidade para enganar ou passar por cima do outro, porque terão vergonha de usar cábulas na escola e mais tarde vergonha de usar dinheiro que não seja ganho com o esforço do trabalho deles. Serão considerados uns lorpas ou pior uns incapazes. Estarei a lutar arduamente para criar marginais?

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Enfermeiras de Sangue

Já anoitecera a algum tempo, no entanto, nos corredores frios do hospital a hora é sempre a mesma, indefinida como que honrando a continuidade eterna entre a vida e a morte. A mulher levava um embrulho branco nos braços, pela forma como o levava adivinhava-se uma criança de tenra idade, talvez um bebé, ela seguia, com alguma dificuldade, talvez devido ao peso, ou ao cansaço, mas tinha que acelerar o passo, não podia perder quem a guiava por um infindável labirinto de corredores brancos, largos e iluminados. Por fim, um elevador e, depois o serviço de pediatria. É fácil reconhecer o serviço de pediatria em qualquer hospital, há como que retoques de cor e formas que mesmo com boa vontade, nos parecem deslocadas e houve-se mais chorar do que gritar pois as crianças sabem que as suas dores são passageiras, mesmo que o não sejam. Acreditam em nós e pedem-nos ajuda, chorando. Raramente gritam ou se calam em desespero.
Naquele momento apenas se ouvia um choro longínquo e abafado, uma lamúria cadenciada de recém-nascido. Os outros dormiam nas suas caminhas brancas de grades protectoras.
A enfermaria dos mais pequeninos ficava logo no início do serviço, era uma sala enorme, em que se perfilavam em cada uma das paredes laterais, três caminhas de grades de cada lado, separadas por um cortinado contendo cada espaço individual, uma mesa com material de apoio médico do qual se destacava um aparelho para medir níveis de oxigénio e batimento cardíaco. Todas as crianças dormiam naquele momento, pela sala também se viam vultos de pessoas semi deitadas em cadeirões reclináveis, cadeiras e uma enorme mesa com uma televisão ultra moderna, no momento, desligada. Apenas o pip ocasional de uma das máquinas interrompia aquela paz. A mulher entrou e, a enfermeira, solícita e prestável, acomodou o menino na caminha central de lado esquerdo, que ainda estava vaga, indicou à mãe um dos cadeirões para descansar.
Esta depressa se apercebeu que aquela paz era apenas circunstancial e que, o choro de um, era acompanhado pelo coro de outros choros que se espalhavam pela sala até criar um som único e alucinante. Mas mais aflitivo do que os pedidos de socorro das crianças eram as máquinas que, combinadas com elas, reforçavam a urgência desse apoio disparando alarmes ensurdecedores e completamente inúteis, uma vez que todos estavam acordados e atentos prontos a prestar auxílio aos mais novinhos que sofriam quer os enfermeiros que, em bando branco, invadiam a sala, a qualquer hora, quer as pessoas, na sua maioria mulheres e mães que estavam vinte e quatro horas por dias e sessenta minutos por hora em atenção exclusiva ao seu bebé doente e por isso se encolhiam, como podiam em cadeiras para passar a noite. É claro que essas mulheres, enfermeiras de sangue, também precisavam de se alimentar, mas revezavam-se e nunca saiam todas. Para jantar iam em bando, como fazem os pinguins, mas aguardavam que chegassem os pais do trabalho e confiavam-lhes os seus amores, ficavam eles, em vez delas, por escassos minutos, uma vez que o tempo deveria ser apenas o necessário para se alimentarem e voltarem para velar junto da sua criança doente. Esse era o momento de encontro com aquele que estando ausente, nunca se ausentava. As palavras falavam de actos de rotina, de tratamentos e de vírus, os silêncios só falavam de amor. E quando partia, ficava no olhar da criança, no seu sorriso mudo e confiante. O dia era pastoso, branco, cheio de dúvidas e de receios. A noite um ensurdecedor grito de desesperos e de esperanças.